sábado, 27 de fevereiro de 2010

A lógica contemporânea da tecnologia e da comunicação: questões sobre a neutralidade, a apropriaçao privada e o biopoder

Reflexão sobre o II Fórum de Mídia Livre, realizado em Vitória, ES, em dezembro de 2009.

Quero sular esse debate – é isso mesmo, sular, e não nortear ou orientar – construindo um paralelo entre os empreendimentos econômicos e solidários (EES) e os veículos de mídia livre (VML). Precisamos virar o mapa de cabeça para baixo, para que o sul ficar para cima.
Sumariamente, podemos entender que os EES são novas organizações sociais que estão conquistando espaços políticos importantes na sociedade. Já são milhares de emprendimentos[1] gerando trabalho e renda no país, porém, diferentes de uma empresa tradicional capitalista. Os EES caracterizam-se pelos aspectos da democrcia participativa, da solidariedade e da partilha comum, entre os produotres, das riquezas e dos ganhos econômicos entre todos, de forma equânime. Quer dizer, é um modelo de uma nova economia, sem patrão nem apropriação privada.
Os VML são instrumentos de democratização e de ampliação do acesso a informações de interesses de grupos sociais que reverbeberam a diversidade, comunicando os seus discursos, manifestos, propostas e movimentos. O VML se contrapõe aos espaços das mídias tradicionais, geralmente pagas ou privativas de grupos capitalistas, que reproduzem conteúdos, discursos e práticas que desconstroem o senso de cidadania, limitando os desejos e formatando estéticas.
A relativa visibilidade dos grupos sociais que constroem os EES ganhou mais força a partir de 2003, com o governo Lula, que dirigiu políticas públicas a diversos segmentos sociais, como a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) e de maiores investimentos no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), entre outras inciativas. São agricultores familiares, indígenas, quilombolas, extrativistas, catadores de materias recicláveis, desempregados, entre outros grupos sociais que, com poucos suportes e investimentos, têm alcançado espaços para comercialização de seus produtos, como, artesanatos, roupas, utensílios, serviços e alimentos.
Os EES, como geradores de produção e de riqueza, demandam a aplicação de tecnologia para os seus processos, porém, há um problema de restriçao aos empreendiemntos solidários. Existe, no país, uma política pública destinada à inovaçao tecnológica que conta com o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) – foram disponibilizados R$ 900 milhões de reais nos anos de 2008 e 2009[2] – mas que, infelizmente, é todo destinado à busca de soluções tecnológicas para as grandes empresas brasileiras, ou ditas – indústria brasileira – como Ford ou GM.
Não fosse só o FNDCT, o capital privado ainda se apropria do conhecimento gerado pelas universidades públicas, onde são formados os cientistas que passam seus quatro a seis anos de mestrado e doutorado, desenvolvendo o melhor parafuso para os produtos daquelas empresas da “industria nacional”. Os professores e pesquisadores da academia estão inseridos num ritmo e demandas, que envolvem os estudantes de “aprendizes de feiticeiros”, como diz Hobsbawm, para atender o capital dito produtivo. No entanto, esse capital tem somente o objetivo de buscar a exploração e aumento dos lucros privados e restritos dos detentores do poder. Ou do biopoder?
A concepção contemporânea e majoritária de ciência e de tecnologia passam a margem das necessidades colocadas pelos EES ou pelas comunidades que dependem daquelas organizações para sua sobrevivência. Vamos nos questionar sobre um caso hipotético: em qual a universidade pública brasileira estaria hoje contando com investimentos do FNDCT para o desenvolvimento, qualificação ou criação de filtros de baixo custo para as cisternas de placas pré-moldadas de captação de agua de chuva, para consumo humano em época de estiagem, para habitantes do semiárido brasileiro?[3] Ou a dedicação para a melhoria de qualquer outra tecnologia social[4] - são inúremas soluções simples que está resolvendo e mudando a vida de muita gente - que poderia ser aperfeiçoada ou aprimorada para ser mais eficiente?
A ideia corrente de inovação e de tecnologia está vinculada aos conceitos de neutralidade e autonomia da ciência e determinismo da tecnologia, distante do controle e da participação da sociedade. A visão do “norte” de desenvolimento da ciência e da tecnologia é exôgena, independente, inevitável e infalível! Bem, deu no que deu... consumo, desperdício, poluição, urbe etc.
A partir daqui já podemos perceber alguns paralelos de como de trata a ciência e tecnologia (C&T) e os processos de comunicação. O campo da C&T é restrito aos feiticeiros das cátedras. Quem ousaria fazer ciência fora dos centros de pesquisas? Seria uma injúria! A comunicação de massa e o trânsito da informação global acontecem por si só, por fora da participação social, apenas por meio dos meios dos grandes donos de meios. A mídia é fechada e os conteúdos de comunicação são privados, apenas alguns comunicam. O brete social e limitador do espaço para o pensar científico e para o desenvolvimento tecnológico, assim como para a condição e possibilidade de se construir mensagems e de se disseminar comunicacão são definidores do status quo da biopolítica imposta e estabelecida planetariamente.
Outro paralelo desse enredo vicula-se aos processos que viabilizam e financiam essa situação de cabresto. Da mesma forma que o desenvolviemnto de inovação nas empresas privadas acontecem por meio de recursos públicos, as grandes corporaçoes de comunicação são financiadas pelos investimentos de mídia publicitária, em boa parte, com recursos públicos da admistração direta dos governos federal, estaduais e municipais, além dos investimentos das empresas públicas e estatais[5].
Podemos dizer que quem banca a banca é o Estado, literalmente; é só ver os trilhões de dólares para os bancos no mundo todo, na última crise financeira de 2008/9. Certamente, seja por isso que Gordon Brown, primeiro-ministro britânico, tenha decretado a morte do Consenso de Washington, em Davos, no Fórum Econômico Mundial, em janeiro de 2009.
O biopoder, imposto pelos donos do poder e engendrado dentro da sociedade, que utilizam ferramentas perversas como a televisão e o ritmo do sucesso da inovação e da perfeição tocados aos sons de tambores (comunicação e tecnologia), fazendo com que todos corram atrás do conto das sereias, como com Ulisses, constroe o coro unísono que eludibria e encanta o ser/sujeito e o transforma em ser/objeto.
Poucas questões, muitos problemas, mas quais os caminhos para a construção de uma comunicação de fato social e livre? Isso é possível? A camisa de forças imposta pelo biopoder que nos tornam míopes e insensíveis pode ser rompida?
Quanto ã comunicação, podemos seguir sobre dois trilhos: um políico e outro acadêmico/social. Sobre o caminho político, é fundamental a organização e articulação dos diferentes grupos que militam sobre o tema, a exemplo da realização do II Fórum Mídia Livre, realizado em Vitória (ES), que tem grande potencial para a mobilização de diferentes grupos sociais que ainda escutam os cantos das sereias. Além da mobilização, torna-se necessário o fortalecimento de um eixo comum, uma identidade desse movimento pela comunicação social e livre, que possa ser difundida em campanha, por meio das mídias livres participantes e dirigida àqueles que querem construir esse mesmo espaço social, comprometido com a participação da sociedade na gestão da comunicação pública.
O outro passo importante, ainda nesse campo da comunicação, é a construção teórica por dentro dos espaços acadêmicos, porém, juntamente e considerando todos os saberes e as práticas dos movimentos sociais organizados. É preciso reformular e refundar os conceitos, teorias e metodologias da comunicação, como uma necessidade ao estabelecimento de um novo diálogo dentro da sociedade.
Atividades alterativas dessa natureza, certamente, romperiam com as nossas camisas de força que muitas vezes usamos e nem percebemos, porque o poder está em todos os lados, em todas as partes, tornado-se biopoder. Os controles éticos e estéticos criados e impostos sobre o sujeito os torna máquina reprodutora de padrões inumanos. O movimento por uma comunicação e tecnologia livres e sem as amarras dos detentores do poder constitui-se de um caminho para a mobilização daqueles que ainda estão sem as mordaças.

Artigo apresentado na disciplina Biopolítica, no Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília - CDS/UnB, no segundo semestre de 2009.


[1] Pesquisa realizada pela Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) - MTE,
[3] Hoje, são quase 300 mil unidades implatadas no semiárido brasileiro. Ver www.asabrasil.org.br.
[4] Ver Banco de Tecnologias Sociais da Fundação Banco do Brasil – www.fbb.org.br.
[5] Ver Revista Meio & Mensagem, de 6 de abril de 2009.

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